terça-feira, 29 de junho de 2010

Murakami está no divã

Entrevistei o chef japonês Tsuyoshi Murakami em fevereiro e só agora deu para postar a íntegra da conversa. Indico a leitura não só a interessados em gastronomia em geral, mas aos que apreciam culinária japonesa. O chef executa trabalho de ponta à frente do paulistano Kinoshita, unindo ingredientes, preparos e conceitos que, a princípio, não têm muito a ver com a tradição dos sushis a qual nós, brasileiros, estamos acostumados. É o que chama de kappo cuisine. Reparem como o chef se mostra tímido (falando o mínimo possível) no início da conversa e vai soltando a língua aos poucos. Ah, ele contou que faz terapia. Entre outras outras coisas, tem dificuldade de lidar com o "você merece" que cada vez mais pessoas lhe dizem depois de parabenizá-lo por sua alta competência.



Fotos Peu Reis/Divulgação
O que é a kappo cuisine?
É elevar ao máximo o sabor e a textura naturais dos produtos de cada época do ano. Apesar de as estações no Brasil não serem tão definidas como no Japão, essa é a ideia.

Como é a reação das pessoas em relação aos seus pratos, já que não são exatamente como aquela comida japonesa a qual os brasileiros estão acostumados?
Tem de tudo, mas a maioria é muito positiva. São pratos totalmente diferentes dos servidos aqui no Brasil. Acaba sendo uma novidade. Somos pioneiros.

O Kinoshita está fazendo escola?
Acaba virando uma escola. Damos muitos cursos e recebemos muitos estagiários, não só de São Paulo.

Outros restaurantes já estão seguindo seu trabalho, como se fosse uma tendência?
Acho que no meu estilo ainda não, mas já já vai ter, eu acho! (risos)
O que o público mais tradicionalista pensa sobre sua cozinha? Já ouviu comentários de alguém que não concorda com você?
Já, com certeza. Mas lá no Kinoshita temos a base totalmente japonesa. O cara que quer comer um bom sushi ou um bom tempura vai encontrar lá. A diferença é que fazemos isso de uma maneira mais trabalhada.

No Japão também existem restaurantes que praticam cozinha moderna como a sua?
Tem. Essa deve ser a tendência.

Toda cozinha deve se abrir a esse tipo de influência?
Não. Depende do coração de cada um. Acabei de voltar do congresso Madrid Fusión, na Espanha, e vi que a influência da culinária japonesa é incrível. Chefs como Quique Dacosta e mesmo Ferran Adrià, nas apresentações de seus novos pratos, usam muitas técnicas japonesas. Buscam inspiração na simplicidade da cultura japonesa.

Se sente orgulhoso por isso?
Sim. Os grandes chefs da cozinha espanhola e em outros grandes restaurantes franceses e italianos na Europa e nos Estados Unidos têm prazer em colocar o nome dos peixes em japonês. Isso é o máximo.

Isso é reconhecimento de um modo de trabalho, não?
Sim. É o máximo. Ficamos duas semanas na Espanha e comemos nos melhores restaurantes. É tudo muito diferente da culinária japonesa, que é muito mais simples. A base da culinária espanhola é o azeite e por isso ela acaba ficando um pouquinho mais pesada em relação a cozinha japonesa. Não saímos perdendo em nada. Foi bacana ter jantado nesses restaurantes de ponta para ter um referencial. Não no sentido de querer imitar, mas de saber como está o posicionamento do Kinoshita em relação às novas tendências. Não estamos atrás deles, meu amigo.

Hoje você é um chef extremamente reconhecido em São Paulo e já começa visitar outros estados. Além disso, você é muito elogiado, recebe muitos prêmios, todos falam de você. Como lida com isso?
Isso é tranquilo, acho bom. O negócio é respirar e manter o equilíbrio emocional, porque continua a mesma coisa, mesmo saindo do bairro da Liberdade para Vila Nova Conceição. A mídia é fogo. O olhar do terceiro te posiciona, dá uma ranqueada, uma rotulada. Meu coração e minha respiração continuam a mesma coisa. Costumo dizer que se eu começar a mudar, que me deêm uns tapinhas na bunda. Acho que continuo o mesmo, mas não sei se é a terapia que me ajuda! (risos) O restaurante está bem bacana, formamos uma bela equipe e temos uma outra ideia de negócio para o segundo semestre. Na Liberdade tínhamos 10 funcionários, incluindo a família. Agora temos um com 40, na Vila Nova Conceição. É preciso ter hierarquia bem definida. Graças a Deus tenho um chef logo abaixo de mim que toma conta do restaurante e por isso já consigo viajar e fazer eventos fora. Temos eventos marcados em Portugal e Buenos Aires, além de uma viagem levando um grupo para o Japão.

Você vai muito ao Japão buscar referências?
Agora é que estou conseguindo respirar melhor, com equipe bacana consolidada. Aí sim é possível dar umas fugidas, mas sempre para pesquisa. A última veze em que estive lá foi com meu sócio, antes de abrir o Kinoshita. Em breve voltarei ao Japão com um grupo de 12 pessoas. Será meio a meio, passeio e trabalho. Só que em vez de ir a Quioto, onde todo mundo vai, iremos para a região onde nasci, Hokkaido. Vamos a Tóquio e cidades do norte. Vou comprar louças e o pessoal vai conhecer tudo isso em breve.

Como você faz pesquisas para elaborar os pratos?
É intuição. É claro que você senta à mesa para definir um cardápio, mas sentar para começar a imaginar combinações não dá certo comigo. É algo muito do coração. Às vezes nem provo um prato e só consigo fazê-lo depois de alguns meses. Deve ser aquela coisa de registro na memória. Você come alguma coisa num restaurante italiano, o inconsciente analisou aquilo e você criou algo sem saber que foi por causa daquela referência. Acho que é como fazer jazz ou escrever, que são dois prazeres meus também.

Com quais ingredientes você mais gosta de trabalhar?
Com os mais simples possíveis. Em minhas palestras sempre digo que no Japão usam-se quatro elementos: shoyu, saquê, mirim e vinagre de arroz. E com isso você faz as combinações.

Produtos brasileiros entram muito em sua cozinha?
No meu cardápio novo fiz três pratos com o palmito pupunha, mas para degustação ou sugestão do dia, usamos quiabo, cará, chuchu. Não dá para ficar mudando pratos o tempo todo. Há toda uma estrutura de equipe. Além de disso, sou mais de observar, para que eu e a equipe sintamos as nuances e detalhes do processo de criação de um prato. Não saímos criando todo dia 20, 30 coisas diferentes.

E em alguns casos são pratos de execução complicada, não?
É complicado só quando você está complicado com você mesmo. Acho tudo muito fácil. Se você já começa falando que é difícil, intimida a equipe.

O que você importa para o restaurante?
Trabalhamos com uma empresa chamada Yamato. Trazemos de fora ovas, mariscos, shoyu, mirin, saquê, vinagre, arroz. Prefiro um pouquinho mais caro. Uso porque sinto a diferença.

E a clientela sente?
Sente. É claro que precisa haver uma certa indução. O refinamento do paladar da culinária japonesa é muito delicado. Os japoneses que trabalham aqui no Brasil, por exemplo, estão acostumados a comer no Japão coisas refinadas como base, tipo arroz, shoyu ou dashi. Mesmo no Japão, na correria, acabam usando pozinhos de extrato de peixe. Lá no Kinoshita tentamos fazer o contrário. Isso não deixa de ser um chamariz. É uma indução no bom sentido. Não no sentido de venda, mas de venda do conceito, de educação.

Nesse sentido, o paladar do brasileiro para a culinária japonesa tem evoluído?
A culinária brasileira é mais forte e quando alguém experimenta algo que não tem gordura ou que é só o sabor do produto, tendo sensibilidade, é como escutar um bom rock e passar para um clássico. É totalmente diferente.

Nem melhor, nem pior, então?
Não tem melhor, nem pior. Essa merda de “melhor” e “pior” é uma sacanagem. Mas é algo difícil, pois paladar é algo que se desenvolve desde o momento em que a pessoa nasce. Mesmo o leitinho que o bebê toma, dependendo da alimentação da mãe, já contribui para a formação do paladar. É como se o bebê captasse todos os sabores pelo leite. Essa é minha opinião. Bom, mas voltando aquele assunto de antes, agora na Espanha experimentei pratos muito bem elaborados tecnicamente. A comida espanhola realmente tem muito sabor, é potente. Senti falta de uma bela salada. Às vezes achava que a comida do dia a dia do brasileiro é muito mais equilibrada que a espanhola, cuja base está no azeite, no pão. Senti falta de algo mais leve, de uma sopa mais leve. Até nevou em Madri. Senti falta de um sabor mais delicado. Por exemplo, uma canja de galinha. Mesmo com aquela gordurinha amarela por cima, ela é suave, não tem a agressividade da gordura. Na Espanha, senti que muitos pratos são potentes, mesmo nessa cozinha nova, que é aquela coisa bonitinha, toda minimalista. Um alface, por exemplo, não era só alface. Era um alface cheio de azeite, sal e vinagre. O japonês é o contrário disso, pois nesse caso você sentiria a alface pura na boca, com o doce do alface, toda a terra, a textura, a cor. Desculpe, mas é uma outra dimensão de pureza.

No Kinoshita há tradição de gritar palavras de ordem e interação com a freguesia. Ir a um restaurante é como ir a um espetáculo?
Acaba sendo um programa. Não precisa ser, necessariamente, um show. Lá é normal falar “bem-vindo” e “obrigado” em japonês. E como nossa cozinha é toda na frente do público, acaba virando um teatro, um palco. Naturalmente. Não movimento em falso. São oito trabalhando num balcão em que cabem 12 pessoas e todos os pratos são feitos nele. Acaba virando um show, mesmo não querendo. Temos consciência de nossa postura e movimentos. Se você olha para o lado direito, você tem de estar olhando para alguma coisa e esse seu olhar precisa ter uma história e um mapa de ação. Acaba virando realmente um programa e isso é um diferencial que ainda não vi em cozinha nenhuma. É um estilo nosso. O Sergi Arola abriu um bar de tapas na Espanha inspirado no balcão do Kinoshita. Inclusive, ele é nosso cliente aqui no Kinoshita. Fiquei muito emocionado. É muita influência japonesa. Acho incrível. Eles usam produtos japoneses de maneira que os próprios japoneses nunca imaginariam usar. Se o próprio japonês come aquilo, vai achar engraçado. É como se eu pegasse um produto francês e usasse de maneira que não segue a cultura francesa, criando uma coisa nova. É bacana e, ao mesmo tempo, não existe. Os caras são ousados, pegam o produto e vão que vão.

E vem novidade por aí?
Sim. Essa viagem para a Espanha foi muito bacana e o Brasil tem muito mercado, está crescendo. Vem surpresa por aí.

Fora de São Paulo?
Não só empreendimento. Tem muita coisa andando por aí. Rio de Janeiro é um bom mercado, né? Tem muita coisa andando. Como são dois anos e a coisa acabou consolidando, temos várias propostas para analisar. E essa área, graças a Deus, não é minha. É do meu sócio, Marcelo Fernandes. Meu esquema é cozinhar, formar equipe, montar cozinha. Não que eu não acompanhe o que aconteça, mas é aquela coisa: cada macaco no seu galho. O Kinoshita é um sucesso, graças a Deus. Para um oriental como eu, é difícil lidar com reconhecimento. Ainda quero tratar isso na minha terapia. Quando a gente abriu o Kinoshita, o cliente entrava e dizia: “parabéns”. Isso a gente tem na tradução japonesa, mas dizer “parabéns” e complementar com o “você merece”... Agora é que estou começando a entender isso.

5 comentários:

  1. cara, não queria ser o analista do Mura. rsrs
    lembra da apresentação em Tiradentes, no meio da praça?, depois do jantar?. ele é figura, das mais raras.


    abraços,
    Dimas

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  2. Prezado Eduardo,
    Excelente a entrevista com o chef.
    Aliás, gostei também de outra matéria.
    Uma que você fez para o Estado de Minas.
    Caderno Super Esportes, 24/06, pág. 14.
    'No jogo do paladar todos são vencedores'.
    Além de sugestivo título, conteúdo ótimo.
    Pratos típicos de países atraem bastante.
    Lembra-se de um jamaicano que comentei?
    Pois é, até hoje não o encontrei em BH.
    Parabéns pelas reportagens, meu caro!
    Em tempo de Copa, foram de utilidade.
    Tanto pela divulgação como sugestão.
    Quem sabe não vem cardápios sazonais?
    Pratos internacionais para provarmos?
    Casas aqui podiam adotar a idéia.
    Sincero abraço,
    MARCELO BRANDÃO

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  3. Dimas,

    como não me lembraria do Murakami se entregando de corpo e alma a Tiradentes ao som de "My way", cara?! Aquilo foi uma cena inesquecível! Sei que teve gente gravando lá...

    Abraços.

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  4. Oi, Marcelo!

    Obrigado pelas palavras tão gentis. Anda atento aos meus escritos, hein?! Me pescou lá no caderno de esportes!

    Sim, a diversificação é sempre bem-vinda! Quem sabe alguns chefs de BH não se animam agora a introduzir algumas novidades lá de longe no cardápio?

    Abraços.

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  5. que linda reportagem! Por que parou com o Blog! vc e excelente!

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