terça-feira, 30 de março de 2010

Carlo Petrini, prazer e sustentabilidade




Alberto Peroli/Divulgação

Sábado passado publiquei na capa do caderno EM Cultura matéria com o fundador do movimento Slow Food, o italiano Carlo Petrini. Por questões de espaço, tive de cortar e adequar as respostas dele ao formato da página. Para quem perdeu a chande de ler a reportagem impressa, basta clicar no link acima; para quem quiser conferir a íntegra da entrevista que fiz com ele, basta correr os olhos logo abaixo.

Qual é o principal objetivo do Slow Food hoje? E qual é o principal obstáculo enfrentado pelo movimento atualmente?
Nosso principal objetivo é promover o que chamo de novo humanismo, que vem da comida, de tudo o que gira em torno dela, com as pessoas e a natureza em primeiro lugar, para recuperar algo que tem valor e não apenas um preço, algo que enriquece nossas vidas, nossos relacionamentos, nossa relação com a Terra. Queremos que o belo e o bom estejam disponíveis para todos e acreditamos que essa é uma conquista possível para a civilização, que tem a ver com justiça e sustentabilidade, com o prazer de viver. Não precisamos ser ricos, nem pobres para nos dedicarmos a essa renovação e não depende de onde viemos e onde vivemos. É fácil, basta sentir a nossa relação pessoal com os alimentos. Precisamos educar para que se conheçam os alimentos e as pessoas que os cultivam e transformam. É preciso saber escolher e cultivar a diversidade, biológica e humana, para fazer retornar a imensa força criativa que sempre esteve na história humana. Obstáculos, para dizer a verdade, ainda são muitos, porque o complexo agroindustrial que foi criado após a Segunda Guerra Mundial, infelizmente, já passou dos limites perigosos, que têm a ver com a ecologia, economia e justiça social. Porque no mundo há pessoas que não só não podem lutar pelo belo e bom, mas lutam para comer. Não é justo. Eu não estou dizendo que é um sistema errado, independentemente, mas certamente foi longe demais e terá de ser reconsiderado. As forças imensas que entraram em campo e que não têm mostrado interesse em ir embora, porque vivem apenas em nome do lucro, sempre se opõem à mudança. Mas a mudança está no que ultrapassou o limite e, mais cedo ou mais tarde, vai acontecer. Então, não vejo grandes obstáculos. Estou convencido de que as boas idéias vão abrir caminho.

Em certos momentos o Slow Food foi criticado por defender hábito alimentar supostamente elitista. Como o movimento se posiciona em relação a isso? É uma questão superada?
Esta crítica advém da crença equivocada de que o prazer é reservado para a elite, de que o belo e o bom são acessíveis apenas para aqueles que podem comprá-los. Mas não é assim que deve funcionar. O prazer da comida, por exemplo, é fisiológico. Não sou obrigado a consumir produtos gourmet, caros e de super excelência para ter prazer. Desafio alguém a dizer que um prato de origem popular como a feijoada não pode dar esse prazer e também o prazer do convívio e de redescobrir o valor de ingredientes saudáveis e locais cultivados de forma sustentável, às vezes até cultivados por nós mesmos, se tivermos essa possibilidade. No mundo inteiro a culinária é formada a partir de receitas populares, criadas a partir das intuições brilhantes de homens e mulheres que tiveram de criar os melhores pratos possíveis com os ingredientes que tinham disponíveis. Se você pensar sobre o prazer da comida em si, ele é o mais democrático que existe, porque está dentro da gente. O problema real é que não sabemos mais reconhecê-lo e isso demonstra o fato de que a maioria das pessoas acha que ele tem a ver só com coisas de luxo. Nas cozinhas populares há tanto prazer: o belo, o bom, o genial, toda a biodiversidade local. Este é um patrimônio mundial inestimável que não deve ser perdido, mas precisa ser recuperado e reforçado.

Atualmente o Slow Food parece muito mais engajado do que antes em conceitos como "sustentabilidade" e "comércio justo" do que com o prazer gastronômico. O movimento vem mudando sua orientação?
Separar essas coisas é errado. O prazer também é sustentável. Se consumo produtos locais e sazonais, cultivados sem produtos químicos, que requerem pouco transporte e, portanto, poluem pouco e se compro diretamente dos agricultores, gastando menos e lhes pagando mais, porque há menos atravessadores, pensaria que esses produtos são inferiores? Não. Esses produtos serão certamente melhores porque são sustentáveis, respeitam as pessoas que trabalham na terra, não são poluídos e não poluem. Eles custam menos! O movimento não mudou de direção. Portanto, continua a ser um movimento para a proteção e o direito ao prazer. Nós só percebemos que o prazer pode e deve ser acessível a todos, respeitando os agricultores e a Terra. O prazer tem de passar por isso e não é elitista.

Você prefere usar a palavra "co-produtor" do que "consumidor". O que muda com isso? Você acha que as pessoas estão preparadas ou querem desempenhar esse papel?
Sim, as pessoas estão prontas e quem não está pronto logo deverá estar por necessidade, porque o sistema atual é insustentável, já está vacilante e é insatisfatório tanto para o consumidor como para o produtor. Então, tornar-se co-produtor significa estar ciente de que o ato de comer é o último ato do ciclo que se inicia na terra e a ela retorna, passando pelos agricultores, artesãos, transformadores, pescadores e também nós mesmos, com nossas ações. O consumidor diz o que faz na palavra em si: ele consome. Consome a terra, o ar e a água, consome a vida de bilhões de camponeses, consome biodiversidade e também consome sua própria existência, que não é fugaz e é dada pelo dinheiro. O consumidor deixa resíduo, porque os resíduos são a base do sistema de consumismo. O co-produtor sabe que é parte de uma comunidade, pequena ou grande, e sabe que suas escolhas podem mudar a política e, com isso, os que cultivam sua comida terão incentivo para fazer cada vez melhor. Tornar-se um co-produtor é construir uma espécie de aliança com aqueles que produzem os alimentos, porque "comer é um ato agrícola", como diz meu amigo Wendell Berry, poeta e agricultor. Dependendo do jeito que como, oriento a agricultura no mundo. A agricultura é a nossa maior riqueza, não só do ponto de vista econômico, mas de um ponto de vista humano, da civilização. E você pode ser co-produtor em todos os lugares, em todas as latitudes, em cidades ou no campo.

Quais são as pequenas ações cotidianas que cada pessoa pode adotar para estar em sintonia com o Slow Food?
Em primeiro lugar, redescobrindo o verdadeiro valor do alimento, educando-se e informando-se, exigindo educação e informação. E então, aprender a escolher produtos de qualidade e sustentáveis, como os produtos sazonais e locais, tradicionais, frescos e tudo aquilo que exigiu o mínimo possível de transporte e atravessadores. Com um pouco de comprometimento, isso pode ser feito em qualquer lugar, mesmo na cidade. Temos também de aprender a não desperdiçar alimentos, porque o mundo produz alimentos para 12 bilhões de pessoas, segundo a FAO, e no mundo somos sete bilhões! Enquanto isso, mais de um bilhão de pessoas sofrem de fome e desnutrição, enquanto 1,2 bilhão têm excesso de doenças nutricionais como diabetes e obesidade. Então, há algo errado com esse sistema que se baseia em consumir por consumir, no desperdício de alimentos como um direito que se mostra obsoleto. Não. A comida é sagrada. No interior da Itália, antigamente, quando um pedaço de pão caía no chão, a gente o beijava depois de pegá-lo e só então o colocava de volta à mesa. Mas hoje nós jogamos tudo fora, produzimos toneladas de resíduos. Eu não sei quais são esses dados no Brasil, nem os das grandes cidades, mas basta pensar que na Itália joga-se fora quatro toneladas de alimentos perfeitamente comestíveis por dia. Nos Estados Unidos derrama-se 22 mil toneladas por dia! Não é algo aceitável. Redescobrir o valor dos alimentos passa por essas coisas e também nos permite redescobrir o verdadeiro prazer.

Como o Brasil é visto atualmente pelo Slow Food e que papel o país pode desempenhar no futuro junto ao movimento?
O Brasil é um país imenso e charmoso, é o país da diversidade. Por isso é também cheio de contradições, mas as contradições, na minha opinião, são um indicador da riqueza. Portanto, o potencial é imenso e acho que o sucesso que teve a rede do Terra Madre no Brasil mostra isso. Claro, há uma enorme e complexa produção agroindustrial que está seguindo os padrões dos Estados Unidos e da Europa, mas em breve vocês vão começar a considerar não só a riqueza em termos dos benefícios econômicos que traz, mas também olhar para os danos que ela está fazendo às suas riquezas primárias: a terra, a biodiversidade e os povos que habitam as terras onde predomina a monocultura. Observem o que aconteceu na América e Europa rurais e não cometam os mesmos erros. Estou convencido de que o Brasil tem muito a acrescentar ao Slow Food e a Terra Madre, como, aliás, já está fazendo, porque o povo brasileiro ama sua terra, que é tão rica, e não a colocará em risco. Vai salvá-la para que todos os brasileiros possam desfrutar dela e que o mundo possa se enriquecer desse intercâmbio de culturas.

Numa certa época você trabalhou num jornal comunista. Você, o Slow Food e o comunismo compartilham ideias?
Acredito que boas idéias têm pernas longas e um longo caminho a fazer sempre, independentemente de quem as teve. E eu também acredito que os problemas dos quais temos falado têm muito a ver com política, mas pouco com ideologia. É preciso entender isso quando se fala de política em 2010. Quem pensa com ideologia, pensa como há 50 anos e desde então o mundo e as cabeças das pessoas mudaram muito. E tudo continua mudando muito rápido, mais do que imaginamos. Eu não acho que há mais tempo para velhas ideologias. É hora de um novo humanismo.

2 comentários:

  1. Adorei a entrevista. Aprendi bastante.
    Bj,
    LD

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  2. LD,

    que bom que gostou. Acho que o hábito de publicar as íntegras de entrevistas é útil para os que querem saber um pouco mais sobre o que ando escrevendo no jornal. Um trabalho complementa o outro.

    Beijos.

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