Acabo de ler o artigo "Gastronomia globalizada" que o chef italiano Memmo Biadi, do Dona Derna, escreveu na página "Opinião" da edição de hoje do jornal Estado de Minas. Uma ótima surpresa! Chefs não costumam habitar páginas de jornal fora dos suplementos de fim de semana e gastronomia. Trazer ao público discussões relevantes sobre o universo da alimentação é iniciativa das mais louváveis. E é ótimo que tenha sido um profissional do gabarito dele a fazê-lo. Afinal não é por acaso que o Dona Derna completará meio século de existência ano que vem.
Ele defende a "boa comida tradicional" e ataca as "invenções contemporâneas com ingredientes sofisticados e, quase sempre, sem sabor e criatividade". Segundo ele, "em meio a tanta novidade com mistura de sabores e técnicas, a cozinha tradicional está se perdendo". Já que ele levantou essa lebre, acredito ser oportuno mostrar outro ponto de vista sobre o tema e ampliar a discussão, que certamente é do interesse de qualquer apreciador da gastronomia.
A propósito, isso me lembra o famoso embate entre os chefs espanhóis Ferran Adrià (modernidade) e Santi Santamaria (tradição) no Madrid Fusión de 2007. Para quem não sabe a que me refiro, este é um link útil e esclarecedor, com artigo do sociólogo Carlos Alberto Dória a respeito para a revista eletrônico Trópico.
O que é tradição? Por que ela interessa a alguém? E a criatividade, o que é? Novidades são problemas? A mistura de "sabores e técnicas" é um gesto negativo? A cozinha tradicional está realmente se perdendo?
Quem disse que todo chef partidário da cozinha contemporânea, necessariamente, renega a tradição? Memmo cita Adrià e, como seu seguidor no Brasil, Alex Atala. Na visão dele, seriam dois dos principais vetores de contemporaneidade na cozinha. "Talvez, as panelas estejam cada vez mais cheias de contemporaneidade em decorrência de chefs que entendem 'tradicional' como antigo ou ultrapassado", nos diz Memmo.
Numa busca rápida na minha biblioteca, encontrei o seguinte:
"Quando falamos de cozinha moderna, é necessário entender que, para navegar em mares nunca antes navegados, você vai usar aparatos antigos. Sua bússola será sua técnica, e o céu, seus ingredientes. Para ter sucesso numa cozinha de autoria, o cozinheiro tem de entender que criar é muito diferente de inventar. Para criar, usam-se bases já estabelecidas. Inventar é exercício visionário, o máximo da criação, algo que desrespeita parâmetros, mas implica muitos riscos, e pode levar a resultados improváveis e imprecisos. Para surpreender, é muito mais criativo apresentar de forma inesperada algo que você conhece a vida inteira do que alguma coisa fantástica, mágica e espetacular. (...) ...não há criatividade sem bases firmes. Na medida do possível, na cozinha, as técnicas e os equipamentos são ingredientes espetaculares, mas devem ser geridos sem abuso e com muita elegância para chegar a pratos surpreendentes, que ninguém nunca imaginou provar.", escreve Alex Atala em Escoffianas brasileiras (Larousse, 2008).
Atala é mais do que um cozinheiro muito talentoso. É inteligente, tem visão. Pesquisa, estuda e viaja muito. Além disso, é um dos maiores divulgadores dos produtos brasileiros (inclusive, baniu trufas e foie gras de sua cozinha no início do ano). Não é por acaso que seu restaurante, o D.O.M. (em São Paulo, SP), ficou em 24º lugar na lista deste ano da Restaurant Magazine.
Estive lá no início do mês (postarei sobre isso logo mais) e pude comprovar que seu menu degustação é, de fato, uma experiência incrível, absolutamente diferente (nem melhor, nem pior, que fique claro) de um belo jantar no Dona Derna. Comparar duas propostas tão distintas não faz o menor sentido. Colocá-las em conflito também não. Repito: são propostas distintas. Atala vende uma coisa. Memmo, outra.
Por que esses dois tipos de restaurante não podem coexistir de forma pacífica, sem julgamentos e comparações? Quem disse que restaurante tem obrigação de "resgatar" tradições culinárias? Os chefs, por acaso, assinam alguma espécie de carta de intenções/termos de conduta antes de abrir um restaurante? Não é o trabalho de chefs vanguardistas como Atala que torna inativas as tradições gastronômicas do país.
Restaurante não existe sem cliente. Aí me ocorrem mais perguntas: por acaso a clientela está interessada nessa conversa toda? Ou quer apenas comer algo que lhe dê prazer?
A respeito de tudo isso, novamente Carlos Alberto Dória apresenta sua visão:
"O patrimônio gastronômico de um povo é o que ele efetivamente come e aprecia, independente da origem. Assim é conosco. O que comemos hoje é o nosso patrimônio, embora não saibamos bem, pois faltam estudos e estatísticas. O que se origina no passado só vale gastronomicamente se é ainda ativo. Se não se fazem determinados pratos, determinadas receitas, então esse patrimônio não serve para nada gastronomicamente. As idéias de 'resgate' são uma bobagem. Servem apenas para um tipo de historiadores, antropólogos, folcloristas, sociólogos, ganharem a vida fazendo teses, congressos, propondo projetos para o poder público ou para empresas que se beneficiam disso em termos de marketing."
O contexto original disso está aqui e a motivação foi um post do jornalista Luiz Américo Camargo em seu blog.
Memmo também acredita que, "paulatinamente, jovens chefs, sem experiência ou fundamentação correta, começam a inventar moda para parecer bem atualizados com a produção de pratos sem gosto que provocam, no máximo, desapontamento entre os clientes". É claro que muita gente despreparada chega ao mercado constantemente, mas não dá para generalizar.
Não se trata de recriminá-los, até porque o gosto pelas tradições e em vê-las reinventadas (e não eliminadas) é um traço comum nesse tipo de profissional. Os jovens chefs (incluindo os que decalcam em Atala um modelo a ser seguido) são importantes para a renovação da cena gastronômica. Atire a primeira pedra o chef que nunca errou ao tentar implantar uma nova receita em seu restaurante. Lembra daquele prato que quase não era pedido no cardápio? Pois é.
Por fim, é importante registrar que, com o surgimento da cozinha tecnoemocional (que tem Adrià como expoente), uma nova categoria de clientes vem sendo criada: gente que quer mais do que uma noite agradável, com comida, vinhos e boa companhia, pois está em busca de novidades, surpresas, "emoções". E quem frequenta restaurante não vai sempre ao mesmo lugar sempre. Ninguém está em busca de pratos tecnoemocionais toda vez que sai para jantar. Há espaço para todos. Ou alguém realmente acredita que feijão tropeiro, carne de panela, fígado com jiló e afins vão sair de linha por causa de Atala e mais uma penca de chefs modernos?
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Há 8 horas
De forma nenhuma dá pra negar a contribuição de Adrià e Atala (cada um em seu lugar, claro!) para a gastronomia. Como você mesmo disse, há lugar para todos. Acho também que este tipo de cozinha tecnoemocional, quando reinventa um prato, no fim, acaba valorizando o tradicional.
ResponderExcluirMinha única dúvida, que deve ser da grande maioria, é se isto é moda ou se veio para ficar.
Abs,
Gui
Oi, Gui.
ResponderExcluirSó o tempo nos dirá se tudo isso vai permanecer, mas uma coisa é certa: como já disseram por aí, é inegável que o trabalho de Ferran Adrià representa um marco na linha do tempo da gastronomia. Há um antes e um depois por causa dele e dos outros tecnoemocionais, concorda?
Sim, também acho que muitas vezes acontece uma espécie de reverência (não sei se o termo seria esse) ao passado. Veja só: um dos elementos principais da cozinha de Adrià é a surpresa (ele escreve isso em livros, inclusive) e ela só é possível se houver uma expectativa prévia (qualquer que seja) por parte do cliente. Então, há uma comunicação constante com o que já foi feito.
Abraços.
EDUARDO,
ResponderExcluir1.SEU BLOG JÁ ESTÁ NA FAIXA DOS IDOSOS E SÓ AGORA EU O DESCOBRI. COISAS DE FONTES NEGLIGENTES! SE VC Ñ ME FALA...
SE QUER SABER, ESTÁ ÓTIMO, MTO BOM MESMO.
ESTÁ APROVEITANDO BEM O FATO DE FICAR SENTADO EM CIMA DE UMA MINA DE NOTICIAS. PARABOLAS!!!
2.QTO AO TEMA ABORDADO PELO MEMMO NO "EM" DE ONTEM, É UMA TECLA GASTA NAS NOSSAS CONVERSAS. OS ELEMENTOS DA GASTRONOMIA ESTÃO SE MESCLANDO E, COM CERTEZA, A COMPETÊNCIA VAI PREVALECER. ESSE ABRE-E-FECHA DE BOTEQUINS AQUI EM BH SÓ SERVE PARA TUMULTUAR O MERCADO E CONFUNDIR O PUBLICO. AS TECNICAS DE COZINHA SEMPRE SOFRERAM INTERFERÊNCIAS: INTELIGENTES E BURRAS. INFELIZMENTE, AQUI A MAIORIA É BURRA. CANSO DE OUVIR POR AÍ CRITICAS A QUEM FAZ O TRADICIONAL - COMO SE UM RAGU PUDESSE SER ELIMINADO DA COZINHA OU TRANSFORMA-LO NUMA ESPUMA OU EMULSÃO... NADA CONTRA A CRIATIVIDADE, MAS CONTRA A MALUQUICE.
ME PREOCUPA QUE ESSE MOVIMENTO ESTEJA CRESCENDO. ENQUANTO ISSO, O SABOR E O BOM GOSTO EM TERMOS DE GASTRONOMIA CAMINHAM PRO BREJO. PACIÊNCIA.
ENTÃO, VAMOS FAZENDO O NOSSO PAPEL.
3. E VIVA O BOTEQUIM. Ñ VIVEMOS SEM ELE. QUARTA FEIRA VAMOS CONHECER UM NOVO, CERTO?
GRANDE ABRAÇO,
SERGIO AC
Interessante este tema de culinária. Gera inúmeras conversas, opiniões diversas e atinge as pessoas até de faixas etárias diferentes. Até meu neto (de 5 anos) me pediu para fazer um falafel sem gergelim.....rsrsrsrs.
ResponderExcluirEntretanto devo salientar que este negócio de espuma nem é tão recente assim. O Chic Barak, é uma receita tradicional árabe (secular, diga-se de passagem), que é um capelete assado (para que fique corado) recheado de carne, pinhole, salsinha, etc. e depois cozido e que tem como molho, uma coalhada com claras batidas, e que evidentemente fica espumoso.
Se algum culinarista começar achar interessante colocar nozes em franguinho mineiro, nós vamos ter um ´´treco´´........mas, se for bem aceito em outras paragens, aí vira um prato tentador, esplêndido, e por aí vai.......
Acredito que a cozinha é mutante, e graças à Deus é assim, senão estaríamos comendo mandioca, peixe e caças, como nossos antepassados índios.
A gente fica com a cara enfiada horas à fio em livros, na internet e todos informativos, para criar e recriar algo interessante. Por isto que o Adria fecha o restaurante dele 6 meses e fica no laboratório fazendo suas alquimias e bruxarias para quando reabrir, ter algo inacreditável para os comensais.
Êta profissão.......E tome panelas, pias, fogo e água......
Abração Eduardo.
Luciene Martins Rêgo
Tempo: a famosa massa italiana é uma invenção chinesa, modificada e largamente apreciada pelo mundo, obra italiana, bem como o café, uma invenção árabe (nascida no mundo árabe - Abissínia, em uma região de nome Kaffa, daí o nome CAFÉ), também modificada pelos italianos. E vejam a cerveja: nascida árabe e reiventada pelo povo alemão, e pelo mundo a fora...
ResponderExcluirTudo isto é releitura que permanece. E são obras apreciadas e copiadas no mundo todo........affffff
Luciene Martins Rêgo
Luciene,
ResponderExcluiro mais importante é mantermos nossa cabeça aberta para o novo e para o outro. Cada um de nós é livre para fazer, experimentar e gostar do que quiser, concorda? Estou certo de que há espaço para todos - e cada vez mais.
Abraços.
SAC,
ResponderExcluirmuito obrigado pelas palavras de incentivo! Vamos em frente! E aquele botequim que nos aguarde em breve!
Abraços.