sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

O Sr. Mercado

Este post não trata exatamente de gastronomia. Ou melhor, trata, mas de uma maneira enviesada. Explico: o assunto são os mercados brasileiros. Afinal, não é lá o lugar que a gente - que gosta de comer e beber bem - vive visitando? Pois então! Mesmo sem ter nada para comprar não é o maior barato ficar perdido pelas bancas de um autêntico mercado popular? O de BH é um verdadeiro paraíso para caminhadas aleatórias. Mês passado entrevistei o fotógrafo Cyro José Soares, mineiro de Formiga e autor do recém-lançado livro Mercados do Brasil (Autêntica Editora, 215 páginas, R$ 87). Para quem se interessa pelo tema, vale a pena conhecer a obra. "Mercado é um lugar de distribuição não apenas de gêneros alimentícios e outros produtos, mas de cultura, história, costumes, notícas e tudo de uma determinada região. É uma força muito grande numa região e que precisa ser muito mais aproveitada para conhecermos melhor nosso país e também e para quem chega de fora. O ponto para que se conheça uma região é o mercado. Ele é a porta de entrada da cidade, para conhecer a região onde se está", define. Publiquei matéria a respeito no caderno de cultura e, como de costume, compartilho aqui com vocês a íntegra da minha conversa com ele.



Cristina Horta/EM

Como surgiu a ideia de fazer esse livro?
Há oito anos pensei nesse projeto para mostrar os mercados do Brasil. Montei e inscrevi o projeto em lei de incentivo à cultura federal e comecei a batalhar patrocínio. Há uns quatro anos, a editora Autêntica teve conhecimento do projeto e me convidou para fazê-lo em parceria. Ano passado comecei em realizá-lo. Comecei a viajar em agosto, comecei do zero. Foi bravo. Foi avião atrás de avião. Dois ou três dias, no máximo, em cada cidade. Terminei essa maratona em novembro. Foram dois meses e meio de viagem. Ficava dez dias em cada etapa. Visitava quatro mercados de uma vez, voltava, descarregava o material, entregava e partia para a próxima viagem. O mercado de BH foi visitado duas vezes, no início e no final.

Por que?
Fiz BH primeiro. Fui tomando pé da situação e depois dessa volta pelo Brasil, estava um pouco mais maceteado com o que chama e o que não chama a atenção, o que fica faltando. Na volta foram três dias no de BH, onde trabalhei por três dias. Gosto muito do Mercado Central de BH, mas como a gente fica muito acostumado ao que é da terra da gente. Lá em Florianópolis, o mercado é lindo e tem um bar-delikatessen famoso com clientela muito grande. Conversando com o dono, ele me disse que conhecia 32 mercados no Brasil e no mundo. Perguntei qual ele acha o mais completo e ele me respondeu que é o de Belo Horizonte. E depois de andar pelo Brasil todo, vi que é verdade.

O que te levou a concluir isso?
A diversidade e a variedade dentro dos mesmos itens, como queijo e mel. Queijo Canastra, Serro, Mantiqueira. Mel de eucalipto, assa-peixe, flor de não sei o que. A área de artesanato é enorme, com coisas de Minas, Nordeste e Norte. Os outros mercados são muito típicos. O Ver-o-peso, em Belém, por exemplo, é fantástico, com diversidade enorme, mas só de produtos da Amazônia. Já o mercado de São Paulo não tem verdura, apesar de ser o mais organizado de todos e de ser muito voltado para gourmets, com produtos do Norte, Nordeste e do mundo inteiro. Mas é só isso, pois agora é que está começando a ter uma seção de artesanato, ainda muito fraquinha. No mercado de Manaus é o artesanato que domina, assim como no de Salvador, e o de Cuiabá, que não tem quase nada de artesanato, é centrado em produtos da região e peixes do Pantanal.O Ver-o-peso, em Belém, foi o mercado que o inspirou a fazer o livro e disputa com o de BH, o título de meu preferido. Me encantei com as senhoras que vendem ervas e água-de-cheiro lá.

Foram quantas fotos, no total?
Entre usadas e não usadas, foram 8 mil fotos. Entre 700 a 800 em cada mercado. Ainda gosto de filme, mas esse trabalho foi feito com máquina digital, devido ao prazo apertado. Acho que ainda vamos demorar um ano para chegar ao ideal, que seria 40 megapixels. A qualidade da imagem em 12 megapixels ainda não se compara ao cromo. No livro há umas dez fotos em cromo que eu já tinha. Ainda não experimentei essa câmera de 24 megapixels, mas já me falaram que melhorou muito.

Como foi feita a seleção dos mercados que integram o livro?
A maioria escolhi em função das viagens que já havia feito. A editora indicou os mercados do Rio de Janeiro , Salvador , Recife e Florianópolis. O restante fui eu.

Como era o trabalho em cada mercado?
Um jornalista diferente esperava por mim em cada cidade. Em BH, o escolhido pela editora foi Rodrigo Zavagli. Nos reuníamos com a administração do mercado e pedíamos roteiro, sugestões e um guia para andar pelo mercado. Isso facilita muito, pois o guia vai abrindo o caminho: "Ô, fulano, o moço aqui está fazendo um livro". Em BH mesmo, as pessoas perguntavam para que eu estava lá fotografando e ficavam ainda mais desconfiadas quando eu pedia identidade e assinatura para poder publicar a foto delas. Os nordestinos da Feira de São Cristóvão são ainda mais desconfiados que os mineiros. Percorríamos as bancas procurando o que era mais característico e chamava mais a atenção. Procurávamos os donos de banca mais antigos e personagens típicos do lugar. Começávamos por eles. Descobrimos cada coisa e ouvimos cada história. Chegávamos de manhã cedo e só saíamos à noite.

Lembra-se de alguma caso engraçado?
No Mercado São José, em Recife, um senhor de cultura fantástica teve banca lá por muito anos e hoje, aposentado, fica no bar do sobrinho o dia inteiro, pois diz que se ficar em casa, morre. Só vai para casa dormir. Tem 86 anos. Conversa tanto que o nome dele é Microfone. O bar, inclusive, se chama Microfone. Chegamos lá, o cumprimentamos e ele já começou a falar (risos). O que achei interessante em Recife é o tanto que os pernambucanos são ligados a Minas Gerais. Para tudo eles citam Minas, falam da cultura, dos times e dos escritores mineiros. Já no Pará, todo mundo que conta um caso tem de por no meio da conversa o Rio de Janeiro, mesmo que não tenha nada a ver. Na Bahia, nem falam de Minas Gerais. São só eles. Já No Mercado Modelo, em Salvador, encontramos um negro com roupas africanas bem típicas e por causa disso resolvemos entrevistá-lo. Ele tinha banca lá e possuía uma cultura baiana impressionante, explicando tudo. Disse se chamar “Jamaica da Paz, a máquina de fazer música” e começou a cantar. Até comprei um CD dele. Impressionado com o conhecimento dele, perguntei em que cidade da Bahia havia nascido e ele respondeu: “Não! Nasci no bairro Padre Eustáquio, lá em Belo Horizonte” (risos). Ele não tinha sotaque, nem falava uai ou trem.

Passou por alguma situação de risco?
Belém e Manaus tive de andar com os seguranças do mercado o tempo inteiro. Em Belém, no Ver-o-peso, precisei ser acompanhado por dois soldados na feira do açaí, que acontece à noite. Precariedade mesmo, em termos de assistência e manutenção, está no Nordeste e Norte. Já o de Cuiabá é praticamente novo. Existia um mercadinho na cidade e há quatro anos construíram um galpão gigante ajuntando tudo. Não há tantos problemas por lá. Praticamente todos os mercados que visitei já pegaram fogo. Em organização, administração e limpeza, o modelo é o mercado de São Paulo. O subsolo de lá é uma coisa impressionante. Há uma estação de tratamento de ozônio para combater cheiros, além de combate a rato e pombos, estação de reciclagem que atende até os comerciantes da 25 de março, salão enorme para os funcionários, enfermaria, fraldário. Você não sente um cheiro lá dentro. Os donos são de uma simpatia fantástica, atendendo pessoalmente os fregueses e encaminhando-os para funcionários. A simpatia dos comerciantes é uma constante em todos os mercados. Isso é algo com o qual o vendedor já parece nascer. Fantástico. É uma história que daria mais uns três livros.

Qual é o mercado mais problemático?
O de Manaus, pois é um prédio histórico, maravilhoso, que está caindo aos pedaços. Manaus está totalmente em obras por causa da Copa de 2014 e o mercado está interditado há quatro anos, cercado por tapumes e ninguém fala nada. O turismo nos mercados é fantástico, é um atrativo tanto para brasileiros como estrangeiros. E Manaus vive cheia. Se uma agência não levar um gringo até lá, ele não vai. E se ele for sozinho, não vai enxergar o mercado.

As autoridades já despertaram para o potencial turístico dos mercados?
Em alguns lugares, sim. O Sul é bem mais adiantado nisso. O movimento turístico de São Paulo para baixo é muito grande. O mercado de Porto Alegre está impecável. As autoridades dão muito apoio. A última reforma foi há quatro anos. O mercado mais bonito, elaborado e bem acabado é o de lá. Mais que o de São Paulo. Essa questão de valorização é cultural. O que se aprende dentro de um mercado sobre a região é impressionante. Além do papel de abastecimento, o mercado é um meio de divulgar a cultura, história e costumes do povo. As características de cada região e de cada povo estão dentro do mercado. Sem falar nas notícias. Se você quer saber de alguma coisa, vá para o mercado. Lá você fica sabendo antes que no salão de beleza. Em todo o Brasil, o mercado é uma grande família. O cara tem uma banca, aquela é do filho e a outra, da nora, mas todo mundo passa a fazer parte da família. Se o cara não tem uma coisa, indica a banca do outro. Isso não se vê no comércio. O cara vive a vida dele mais dentro do mercado do que na própria casa.

Mas parece haver tolerância do público em relação a uma certa estética da sujeira nos mercados brasileiros, não?
Isso tem de sumir, pois os mercados são áreas enormes de contaminação. Isso se vê principalmente no Norte e Nordeste. Em Cuiabá, uma vez por semana pessoas de comunidades carentes vão para o mercado limpá-lo em troca de produtos fornecidos pelas bancas. Não é coisa que vai para o lixo, é produto mesmo, reservado para eles. Ficam alegres por fazer isso.

4 comentários:

  1. Excelente a reportagem Girão, li no jornal e esperei aparecer aqui pra comentar. Definitivamente o Mercado Central de BH é um tesão. Um dos programas que mais gosto de fazer é ir até lá no sábado de manhã pra comprar carne e queijo, como uma empada quando chego e um tropeiro quando saio! Excelente a entrevista. Parabéns! Comprando o livro em 4,3,2...

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  2. Rafael,

    que bom que gostou da entrevista e da matéria. O livro é realmente uma boa pedida para quem considera passeios em mercados um programa imperdível.

    Abraços.

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  3. Oi, Dudu!

    Gostei muito da entrevista! Acredito que o diferencial do mercado é a diversidade de aromas, pessoas e produtos! (Adoro o doce de leite na palha "Tradição Mineira"...)

    Quanto à pergunta que vc fez no outro post, naquele dia fomos deliciosa e gastronomicamente acariciados no Baby Beef! Aquela alcatra com queijo... hum... para mim é melhor que picanha!

    Beijos!

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  4. Debora,

    ando gostando de doces de leite menos doces, como o do Bolota, conhece? É feito lá em Tiradentes e, que eu saiba, só dá para comprá-lo lá. Falei dele nesse post: http://blogdoeduardogirao.blogspot.com/2009/12/bolota-lenda.html.

    Não sou fã da "alcatra chorona", mas reconheço o grande potencial de conforto que ela tem! Hahahahaha!

    Beijos.

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