Farinheira. Para quem não sabe o que é, explico me valendo das palavras de Alfredo Saramago e Manuel Fialho no magnífico livro Cozinha alentejana (Assírio & Alvim, 2004), obra que é referência indispensável para quem quer se aprofundar nas riquezas gastronômicas dessa região portuguesa:
Gorduras que restam da limpeza das linguiças juntamente com algumas gorduras e molejas. a água que sobra do tempero das linguiças é misturada com farinha. Em algumas regiões juntam massa de pimentão. A farinheira é cheia em tripa delgada. Vai ao fumeiro.
Já Maria de Lourdes Modesto, verdadeiro rochedo da literatura gastronômica portuguesa, descreve esse embutido, que classifica como dos "mais importantes", numa receita. Está no também essencial livro Cozinha tradicional portuguesa (Verbo, 2005).
São feitas com as carnes entremeadas da barriga (já perto do peito). As carnes são picadas à faca e temperam-se com massa de pimentão, sal e alho. Depois de estarem nesse tempero durante dois dias, deita-se-lhe colorau em pó em quantidade suficiente para se obter uma massa bem rosada. Junta-se farinha de trigo, mistura-se bem, e depois água a ferver até se obter uma papa grossa. adiciona-se então sumo de laranja e vinho branco que bastem para a massa fique tão mole que só possa ser retirada à colher. Enchem-se apenas as tripas até o meio (com um funil e uma colher), atam-se e lavam-se com água morna. Penduram-se ao fumeiro.
E vem do livro Os sabores do Alentejo (Senac São Paulo, 2006), de Aguinaldo Záckia Albert, uma das informações mais interessantes sobre a farinheira:
Da mesma forma que as alheiras do norte de Portugal (antigamente feitas á base de carnes de aves e pão temperado), as farinheiras - ao contrário de todos os outros embutidos - originalmente não continham carne de porco, sendo elaboradas com carnes diversas (vitela, galinha, peru, perdiz etc) ligadas por farinha. Foram criadas pelos judeus convertidos, os "cristãos novos", para mostrar que tinham fumeiros em casa e que comiam enchidos, e assim escapar dos fiscais da Inquisição - que os identificavam pelos hábitos alimentares -, levando-os a pensar que consumiam carne de porco.
Há questão de alguns dias tive a felicidade de experimentar pela primeira vez uma farinheira. Maravilhosa, sabor intenso e com consistência peculiar (penso que pela farinha de trigo). Comprei-a baratinho no aeroporto de Lisboa (guardem a dica!), mas é produzida na cidade alentejana de Barrancos (divisa com a Espanha) pela Barrancarnes e comercializada com a marca Casa do Porco Preto. Do nobre porco preto alentejano, esse "enchido" (palavra que os lusitanos usam para "embutido") leva apenas a gordura - o que não é pouco, já que ela é espetacular... Misturado a ela, "farinha de trigo, água, vinho, pimentão da horta, sal, alho, preteínas de leite, pimenta agridoce, oleoresina de pimentão e conservantes E250/E252". A etiqueta da embalagem ainda informa que a farinheira é curada em "secadeiro natural" e sem passar por "fumeiro", ou seja, não é defumada. O processo de cura leva de um a dois meses. Recomenda comê-la "crua (curada), à temperatura ambiente, cortada às rodelas grossas, cozida no ''cozido à portuguesa", frita ou assada. Só comi do primeiro jeito - ainda! Penso que ficaria ótima num cozido de grão de bico com outras carnes... Por que será que pensei nisso?
Só pode ser por causa desse divino cozido (idêntico ao que descrevi) que provei no restaurante Tomba Lobos, do chef José Júlio Vintém, lá em Portalegre, também no Alentejo, ano passado. Não me lembro bem agora, mas acho que tinha farinheira nesse cozido. É, agora me dei conta de que realmente preciso dar prosseguimento a produção dos capítulos da minha epopeia lusa...
Vista típica alentejana depois de um belo almoço.